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sábado, 8 de janeiro de 2011

Fumaça



Ele estava sentado na sarjeta, fumando um cigarro barato. Bem no centro do distrito onde morava. Ao longe, velhos conversavam sobre futebol e bebiam cerveja direto de um barril aos goles. Alex era alto, moreno e tinha cabelos bastante desgrenhados. “Eu tenho mesmo que cortar esse troço”, dizia ele, mas nunca o fazia. Talvez, no fundo, ele achasse aquele não-corte um tanto quanto sexy. Talvez fosse preguiça mesmo, o que era mais provável.
De um lado para o outro as pessoas corriam, andavam, se arrastavam, cada qual no seu ritmo. Todos tinham suas tarefas e isso lhes era muito importante. Uma velhinha tentava carregar todos os seus pacotes de compras em apenas uma mão. Ela tinha feito a feira e havia esquecido de trazer seu carrinho de metal. Um senhor andava vagarosamente, apoiando-se em um bengala que parecia tão velha quanto ele. Os meninos andavam chutando lata pelas ruas e faziam daquilo seu jogo e passatempo. As meninas fofocavam sobre tudo e todos, com olhos curiosos observando cada movimento alheio.
Algumas crianças – coitadas – eram obrigadas a ficar em frente ao banco, à igreja e à loja de ferramentas fazendo caras de sofrimento para conseguir alguma esmola para ajudar no orçamento da casa. Tinham o rosto meio sujo e suado. Nem sempre os transeuntes colaboravam, mas elas não desistiam. Afinal, era melhor receber vários “não” e alguns “sim” do que voltar para casa sem nada. Elas tinham certeza que seu pai, sempre amoroso, haveria de lhes esperar com a cinta na mão e isso significava uns bons dias sem poder sentar sem que a dor da surra lhes atravessasse a espinha, de cima a baixo.
O dono do açougue vira e mexe parava de cortar suas carnes para pedir troco para o dono da venda. Eles não tinham muitos funcionários, ambos. Dizia-se que era tanto para não ter que dividir os lucros quanto por achar que ninguém faria o serviço tão bem quanto eles mesmos.
A senhora que vendia churros trazia o carrinho de sua casa bem cedo. O sol estava ainda a bocejar quando ela começava a esquentar o chocolate e o doce de leite que usaria para rechear os famosos doces. E as crianças, por sua vez, ficavam rodando o lugar em que ela costumava estacionar, esperando, ansiosos e gulosos.
Alex era jovem, forte de carregar sacos de farinha, cimento e batatas. Um tio seu havia lhe arrumado um emprego como faz-tudo no armazém do seu Anido. Ele descobrira então que ser um faz-tudo significava fazer tudo mesmo. Outro dia seu Anido tivera a pachorra de lhe pedir para escolher os ovos que ele comeria no almoço. E ele nem havia convidado Alex para almoçar! “Velho safado, o que é seu está guardado, pode esperar”, reclamara ele, com raiva.
Ele sempre dizia que andava com todos os seus pertences, sendo esses um relógio, que seu pai havia lhe dado antes de morrer e um anel, que estava na família desde não sabia quando. O relógio lhe servia muito bem, pois, apesar de Alex saber o horário olhando o sol (anos e anos de prática sem ter relógio nenhum), gostava de ver os ponteiros girarem. Já o anel dava-lhe um ar importante. Era de latão, bem simples, com detalhes circulares, mas era o grande tesouro do rapaz. E pronto. Nada mais era dele nesse mundo de meu Deus.
Em poucos minutos, as pessoas se multiplicavam em muitas. Era um distrito um tanto afastado da cidade grande, o que dava um ar de vila para tudo. Era mesmo uma vila que não podia se assumir como cidade por questões políticas de arrendamento, hectares e várias outras coisas com as quais Alex não se importava.
O cigarro já lhe queimava o dedo quando ele despertou de seus pensamentos. Jogou fora a bituca com um peteleco, levantou-se e limpou as calças com as mãos. De longe ele via o armazém e seu Anido fazendo contas na máquina registradora. Decidiu que não iria trabalhar naquele dia. O velho que se virasse sozinho.
Protegeu-se do vento com seu casaco preto de camurça inglesa. A tia Júlia havia passado um tempo na Inglaterra e resolvera trazer o tal casaco para o sobrinho. Coisa curiosa era Alex ter vários tios e tias, mas ser filho único e sem primos. Sua mãe e seu pai tinham vários irmãos e irmãs. Isso fazia com que Alex fosse protegido de vários deles, que davam-lhe, além de emprego e casaco, almoço, livros, discos, e até castigos, quando merecidos.
Foi assim sendo criado por todos e amando o distrito em que vivia. Mas naquele dia acordou com uma sensação estranha, como se algo muito diferente de tudo estivesse para acontecer. Se fosse supersticioso, até poderia dizer que os ventos estavam apontado para lugares diferentes e talvez seu signo e ascendentes estivem alinhados, mas Alex não acreditava em nada daquelas bobagens.
Desceu a rua principal com passos rápidos e certeiros, pois não queria que ninguém o interpelasse para perguntar-lhe porque não havia ido trabalhar. Esse era o grande problema. Como havia sido criado por muita gente, todos achavam-se no direito de cuidar da sua vida e isso metia-lhe raiva até a raiz dos cabelos. Não sabia aonde iria, mas sabia que não poderia ficar aos olhos de todos.
Cantarolando mentalmente uma velha cantiga de rádio, chegou a um entroncamento de ruas no qual nunca havia estado antes. Teria ele andado demais e chegado a outro lugar? “Que estranho”, pensou ele, “achei que conhecesse tudo por aqui como a palma da minha mão. Talvez tenha que olhar para ela com mais freqüência, pois não faço idéia de onde estou.”
As casas foram rareando, tornando-se mais velhas e abandonadas. “Minha avó sempre dizia que quanto mais longe do centro, menos as pessoas cuidam das aparências... Estava certa ela”. Sentou no banco da pracinha, tirou o casaco, colocou-o a seu lado e ficou parado por um momento. À espera. Sua intuição dizia que algo iria acontecer e ele resolveu dar asas à sua imaginação fértil. “Talvez a cidade seja invadida por alienígenas, como naquele livro. Pode ser também que os russos espiões apareçam interrogando todos atrás do grande James Bond. Quem sabe pessoas rodem por aí atrás de voluntários para fazer uma pirâmide humana.”.
Enquanto ria-se sozinho de suas hipóteses mais que enlouquecidas, Alex enfiou a mão no bolso do casaco para tirar mais um cigarro. Depois de acendê-lo, entreteu-se fazendo formas com a fumaça e dando risadinhas coloridas quando conseguia algo interessante. Quando aconteceu, ele estava tão distraído que demorou a notar. Da fumaça que se esvoaçava pelo ar, baixou os olhos para a rua e encontrou os dela. A moça descia a ladeira em direção à pracinha. Em poucos segundos, Alex já havia registrado cada pequeno centímetro de seu corpo.
Ela vinha com uma sandália, fechada nos dedos, calça jeans simples e uma blusa de alcinha preta. Os cabelos presos em um rabo-de-cavalo e óculos escuros, o que atrapalhava o rapaz, que queria ter visão completa daquela que descia a ladeira. O caimento da blusa revelava os contornos dos seios da moça e isso atiçava a mente de menino de Alex e ele precisou de um momento antes de tomar qualquer decisão de qual seria a reação que ele teria.
Magra, alta, rosto desfocado em pensamentos e passos retos. Assim era a maravilha que descia a ladeira. Vinha provavelmente de casa para comprar algo no centro do distrito. Talvez viesse visitar alguém, uma amiga ou algum parente. Talvez estivesse apenas exercitando as pernas depois de ficar horas em casa. Alex não sabia o que fazer e também não conseguia tirar os olhos dela. Sua angústia foi tornando-se cada vez mais insuportável, pois a moça aproximava-se mais e mais a cada segundo.
Ele apagou o cigarro no chão, chacoalhou a camisa, como se querendo que o cheiro em pó se tornasse para ser limpo apenas com chacoalhões, passou a mão nos cabelos e limpou a garganta. Mexeu a língua para conferir se todos os dentes estavam limpos e sorriu. A moça sorriu também, divertida. Ela não esperava tamanha preparação para uma reação tão simples e comum. As frases se formavam e sumiam na mente de Alex como bolhas de sabão e ainda não estavam prontas quando ela passou por ele e disse-lhe: “Olá”, com a voz doce de pássaros.
O rapaz sentou de novo no banco para se recobrar da visão e, como em um filme, viu a moça seguir seu caminho. Ficou observando-a subir a ladeira em direção ao distrito até que ela virasse a esquina.
Muitos pensamentos vieram à sua mente, temas variados, alguns sobre a efemeridade dos encontros na vida e também sobre o quão bela era a moça e também a dúvida se ela teria notado o sentimento que havia provocado em Alex. Pensamentos eróticos também se-lhe passaram pela mente e ele deu um sorriso malandro. Esses pensamentos se esfacelavam em vários outros menores, tudo muito rápido e ele teve um estalo. Ele tinha de ver a moça novamente, tinha de responder-lhe àquele “olá” tão suave e musical.
Se saísse correndo, a moça provavelmente se assustaria e ele também chamaria a atenção de todos, além disso com certeza uma das crianças acabaria por contar ao seu Anido o que Alex estava fazendo ao invés de estar trabalhando. Resolveu então caminhar e procurá-la, mas mantendo um passo tranqüilo. Quando os pés tentavam enganar o cérebro e correr, seus neurônios faziam com que fossem mais devagar, tudo isso em microssegundos.
Virou na mesma esquina que a moça havia virado, mas o que viu não era o esperado. Milhares de transeuntes passando de um lado para o outro e nem sinal da alcinha. Alex virou ruas, entrou em lojas, até no armazém – onde deixou seu Anido falando sozinho – chegou à beirada do rio, atravessou a ponte, procurou, procurou, procurou sem dar bandeira de estar procurando.
Todas as moças agora pareciam estar com a mesma roupa e ter o mesmo rosto. Ele precisava encontrá-la. Ele não conhecia seus rosto pois ela usava óculos escuros. Desesperou-se. O coração batia forte, descompassado.
A moça havia-lhe aberto mundos novos com aquele simples “olá” em uma praça afastada. E ela era linda, peitos e lábios, como diria Caetano – não sem um quê de malícia. Alex queria estar com ela só para ouvi-la dizer “olá”, com sua voz doce de pássaros em bando. Seu rosto, como era seu rosto?! Nem isso ele sabia, mas poderia propor casamento, fugir, abandonar aquele distrito, os parentes, seu Anido e tudo o mais. Ela não teria mais que andar tanto para fazer as coisas. Eles teriam uma casa no centro da cidade grande com um jardim na frete e as crianças pulando no quintal de trás - Norma, Lúcio e Dave, o caçula, sempre com seus cabelos espetados. Agora tudo o que conhecia era uma grande bobagem. Ele só queria beijar aquele rosto perfeito.
Depois de tanto tanto tanto rodar o distrito, sentou-se no banco da praça central e pôs a cabeça entre as pernas, derrotado. Devia ter sido uma miragem, uma alucinação. “Impossível haver moça assim tão bonita”, pensava ele, tentando se animar.
Pegou um cigarro, acendeu e pôs no canto da boca. Olhando para o chão, viu formigas coletando alimentos para levar para a Rainha. Uma formiga levava um pedaço de folha três vezes o seu tamanho. Deixava cair vez ou outra, mas não desistia. Era uma força e coragem além das forças do pequenino animal, mas o seu foco era absoluto. Era seu dever e a formiga o fazia com vigor. Aquilo deu um novo ânimo ao rapaz e ele, em um ímpeto de bravura, ficou de pé.
Ao longe, observando-o, estava a moça. Ele ficou estático. Ela veio em sua direção e ele apreciando cada movimento. Ela também estava com cara de quem andava procurando algo.
Ele tentou formar alguma frase de efeito, mas ela fez um sinal com a mão para que se calasse. Estendeu um cigarro e disse: “Tem fogo?”. E naquela pergunta e na conseqüente resposta afirmativa estavam implícitos filhos casa carro contas felicidade. Ela sentou no banco a seu lado. Ela escolheu sentar no banco a seu lado.
Os dois ficaram ali fumando, enquanto seu Anido pegava os sacos de feijão e distribuía pelas prateleiras, enquanto a moça dos churros se confundia nas contas com tantas crianças querendo os doces, enquanto o açougueiro fazia um enorme pedaço de carne em fatias, enquanto o sol se punha, ao longe.

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