Caros visitantes,

espero que vocês divirtam-se muito lendo minhas palavras. Peço, porém, por ser esse um trabalho independente, que não republiquem meus textos - inteiros, partes, frases, versos - sem minha expressa autorização. A pena para crime de plágio é dura, além de ser algo bastante humilhante para quem é processado. Tenho certeza que não terei problemas com relação a isso, mas é sempre bom lembrar!

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domingo, 26 de fevereiro de 2012

Sentimental

O dia foi agitado. Os sentimentos foram vários. Estou cansado de uma noite de apenas duas míseras horas de sono, estou contente com uma proposta que me fizeram, estou divertido com a quantidade de bobagens que ouvi, estou ansioso e agitado com outras coisas. Sentimentos diferentes perpassaram meu dia, minha alma e meu corpo durante esse dia como raios de cores e intensidades diferentes. Toquei canções de Adriana Calcanhotto que me redescobriram sensações antigas, ouvi piadas novas e criei imagens em minha mente. Um turbilhão de memórias que agora o meu cérebro passa a processar e dar um destino para os neurônios gastos no processo.
Às vezes a minha vontade era de que meus sentimentos estivessem em pequenas caixas em armários imaginários. Abriria a caixa que me interessava no dia, fosse o que fosse, melancolia, raiva, alegria, medo, prazer. Talvez até mais de uma caixa, mas sempre com controle. Gosto de ter o controle e gosto de perder o controle.
Ando com um sentimento estranho martelando em minha cabeça nesses últimos dias. Gostaria de guardá-lo no fundo do armário, mas ao mesmo tempo gostaria de explorá-lo; é então o que resolvo fazer aqui nesse texto. O sentimento é o do estar vendo algo morrendo lentamente perante meus olhos e não ter nada que eu possa fazer para evitar essa perda.
Lembrei-me de meu querido cão Mytokas (isso mesmo, com Y e K, pois era um vira-lata de raça), que definhou por meses, até decidirmos dar a injeção de misericórdia. Cada dia uma dor nova para ele e para nós mais uma angústia. O tremer da pata, a queda dos pêlos e o sumiço de sua alegria habitual foram como lancinantes agulhadas. Lembrei-me de meu querido avô Rubens que, no fim da vida, tinha dificuldades para se lembrar de quem eu era. Foi muito duro para um garoto de quinze ou dezesseis anos – para quem o avô era um ídolo – ser assim tão sumariamente esquecido. Lembrei-me de artistas que gosto, entregando-se às drogas, ao sucesso absoluto, custando-lhes a vida. O exemplo recente foi o da excelente cantora Whitney Houston, mas também aplica-se, e bem, aos casos de Amy Winehouse e Michael Jackson, talvez até Macauly Culkin.
Foi muito triste ver Houston tentando voltar ao auge depois de uma temporada pesada de uso de drogas intenso. Sua voz doce e melodiosa deu lugar a um arremedo de voz rasgada e grave. Sua canção-tema, “I Will Always Love You”, já não mais servia de exemplo para qualidade vocal. Sua súbita, mas também um tanto esperada, morte fez com fossem relembrados e repensados os caminhos que levam alguém no auge da fama às drogas e ao resultado dessa viagem muitas vezes sem volta.
Penso também em sonhos que são esquecidos, afetos que são amenizados, laços que são desfeitos. Conheço vários casos que poderia citar aqui, mas não vejo propósito em fazê-lo. Eu mesmo tenho um sonho que está sendo bombardeado com palavras duras – verdadeiras e até um tanto esperadas – mas ainda assim duras. Vejo, diariamente, seu telhado de vidro ser atingido por pedras cada vez maiores e os danos serem enormes. A explosão pode acontecer e se exibe, cruel e maquiavélica, e eu, frágil como um pombo, tremo de medo que ela aconteça. O processo está sendo lento e silencioso, para que o sangue não seja vertido em demasia. A morte de algo que ficou no sonho talvez seja mais doída do que a morte de algo real. Essa primeira morte cobre-se do véu do “e se?”. “E se déssemos certo?” “E se fôssemos felizes?” “E se nos largássemos no ar sem pára-quedas?”. A incerteza dá força ao medo e apoio à confusão mental.
Diariamente eu pego a caixa desse sentimento e procuro organizá-la, mas as outras caixas acabam interferindo, abrindo bocas e dando opiniões, por vezes de utilidade nula. O pior pode acontecer, mas também o melhor pode acontecer e a vida é nada mais do que uma sucessão de dúvidas e voltas. Espero me encaixar nesses caminhos algum dia. Nada posso fazer senão esperar. Então espero. E espero. E espero, tentando retomar a visão caleidoscópica de meu coração, aquela que me faz ver tudo de diversos ângulos.
Agora sentado na cama, dentes escovados e pijama, relembro versos cantados por Whitney com tanta paixão. A canção é de despedida, um relacionamento que não deu certo e que eu falho em entender porque é tão escolhida para casamentos, sendo assim tão anti-romântica, mas cândida. A cantora lamenta ir embora, mas sabe que não poderão ficar juntos, tem de seguir caminhos diferentes, seus cursos de vida estão deixando de se cruzar no momento da canção. Apesar desse desvio, a cantora jura para sempre amá-lo, no sentido talvez mais real da palavra, pois entende que amar é deixar ir, deixar a pessoa livre para fazer o que quiser e ser feliz, mesmo não sendo conosco. Esse é o verdadeiro amor, também na opinião deste escritor que vos fala. O amor que liberta, não o que prende.

Se eu ficasse
Eu só estaria no seu caminho.
Então eu vou, mas eu sei que
pensarei em você
em cada passo do caminho.
E eu... sempre vou te amar...
Eu sempre vou te amar...
Você, meu querido
Doces e amargas lembranças,
São tudo o que eu levo comigo...
Então adeus, por favor não chore.
Nós dois sabemos que eu não sou o que você precisa.
E eu... sempre vou te amar...
Eu sempre vou te amar, oh
Eu espero que a vida lhe trate bem
E eu espero que você tenha tudo
Tudo o que você sonhou para ti.
E eu lhe desejo diversão
E felicidades.
Mas acima de tudo, eu lhe desejo amor.
E eu... eu sempre amarei você...
Eu sempre vou te amar
Eu sempre vou te amar


para você, Whitney. Obrigado por tudo.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Choro de Neve

Acordo no meio da noite e os pensamentos vem aos borbotões como se fossem ondas de sangue de um mar de dores. Meus ossos estão puídos, gastos, putrefatos como eu andando feito zumbi nessa terra de gente que adora arrancar pedaços de incautos jovens idiotas que confiam nessa bobagem chamada amor. Me sinto velho, mas sou jovem e sou velho demais. Fico pensando onde deixei toda aquela candura, toda aquela esperança que o jovem eu tinha e o atual eu não tem mais. Fico pensando em que virada do caminho passei a ser esse homem amargurado, ultrapassado, renegado que sou hoje. Já tive uma vida, uma família, filhos e hoje não tenho nada. 
Passo meus dias jogando sal na neve para que ela derreta e fique mais fácil para os pais de família perfeitos dessa rua tirarem o que resta dela de suas sacadas maravilhosas. Hoje em dia sou feito de sal amargo. Derreto qualquer sorriso dirigido a mim, um “bom dia” involuntário despedaça-se em minha presença, já que não sorrio de volta, não cumprimento de volta, só solto um grunhido animal, um som de urso, de leão emasculado. Os pontos desse lamento meu parecem facas em meu corpo velho, cada hora que devo parar para pensar sem saber direito como continuar. Tão fácil parece se lamentar, não é? Mas não é, não é. 
Sinto-me uma massa putrefata de nada sobre nada com nada e que ninguém dá o menor valor. Meus filhos foram embora, cresceram, tiveram seus filhos e não sei mais deles. O fogo tomou conta de tudo. Minha casa, meus bens, todos se foram naquele incêndio criminoso. Eu sei quem foi. O que me dói mais é não poder provar, eu sei quem foi e queria poder sair gritando para todos o nome do cretino bastardo que botou fogo na minha casa, mas não posso. Perigo de ele me atacar e me jogar na cela da cadeia para mofar. Eu me alimento de gelo e sal. E restos de almoços perfeitos, semi-jogados fora. Não existe jogar lixo fora, não existe o fora, só existe o dentro. 
Nada fora de mim existe, só existe o dentro. E o dentro de mim dói muito. 
Se ao menos eu pudesse chorar, mas as lágrimas se congelam em flocos de neve. 
Eu choro flocos de neve. 
Neve. 
Nada.


Nada.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Múltiplo

Para Ricardo Adorno

Sorriso no rosto, cabelo arrumado
Ele sai pra trabalhar
É um grande ator, sério e dedicado
Que tenho a honra de ver atuar

É guarda furioso, é amante que abandona
É pedaço de pássaro que se desmancha no ar
É capiau amoroso, é rainha-mona
É alguém que me dá vontade de copiar

Tantos anos eu já no palco, sempre contente por ser meu lugar
Mas saio de cena, eu me desfalco, para deixá-lo trabalhar
Um colega-ator assim tão competente, poucas vezes pude encontrar
E com tanto de bom que ele tem pra mostrar, eu vou é deixar rolar

A generosidade ali é infinita
A alegria, algo contagiante
Sua alma, tão certa e tão bonita
De suas personagens, é um amante

Foram dois anos de convivência
Mas milhares de séculos de aprendizado
Amizade e alguma indecência
E nosso pacto está fechado

Rios de lágrimas já derramou
Por saudades, tristezas e alegrias
Mas a criatividade nunca se acabou
E eu espero não chegar esse dia

Múltiplo, coerente, inconseqüente
Um ator, um amigo, um homem
Tantas vezes certo, por vezes demente
É um prazer dividir o palco, a vida, o nome.

O nome é um mero enfeite
Pra esse cara que é um transtorno
Apesar de tudo, é um deleite
É meu amigo Ricardo Adorno

Teus Olhos

Tão perto, longe

Teus olhos, onde?

Espelho, mil lágrimas

Me dê um beijo

que eu preciso partir

Partir-me em dois.

Anos 30

Acordo.
Acordo.
Acordo, sinto-me acordando, mas permaneço de olhos fechados. Penso em abrir um olho e depois o outro, mas já fico cansada só em pensar nisso. Quero guardar o resto de sonho ainda, ao invés de me jogar de pára-quedas em um novo dia. Fico de olhos fechados e as pálpebras se incomodam, parecem reclamar e dizer: “abra logo seus olhos, raios!”, mas finjo que não escuto. Nem teria como escutar mesmo minhas próprias pálpebras. Acho que estou ficando louca.
As imagens do sonho se dissipam e o meu campo de visão se torna um eterno vazio. Entro em contato com a luz solar aos poucos. Alguém deve ter pensado no meu bem e vindo abrir as janelas para deixá-la entrar, mas eu não a quero. Não quero ter contato com o sol que traz vida e alegria. Não quero.
Quero ficar no escuro, dentro de mim, me nutrindo, me desgastando, me dissipando também como brumas. Não me quero mais e me quero ainda. E o tal sonho foi horrível, mas melhor que essa realidade de merda.
Abro os olhos em um impulso. O choque faz meus olhos contraírem e chiarem como chaleiras. Meu cérebro me levanta e fecha as janelas. Volto para a cama. Quero voltar para o sonho. Aquele sonho feliz que eu tinha. Aquela pessoa que eu era. E na janela só vejo neve, neve, neve e nada. Quebrei todos os espelhos e maquiagens. Pareço uma puta velha. Cansada dessa porra toda.
Velha.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Jorge

Jorge,

eu tenho uma confissão a fazer e talvez não seja algo fácil pra você ouvir, ler, na verdade. Não sei de uma maneira melhor para explicar ou contar isso, sem ser assim, explicitamente. A verdade é que eu sempre te amei. De perto e de longe, por anos, eu te amo e te amei desde os tempos do parquinho. Lembro com prazer das nossas brincadeiras, de você colocar o pé para eu tropeçar e eu fazer a mesma coisa. Lembro até do dia que você realmente caiu com tudo, bateu a boca no chão e lascou um dente. Sua mãe ficou furiosa e disse que eu era um irresponsável. Ela não entendia que eu era só uma criança e a gente fazia tanto aquela brincadeira que o acidente poderia  acontecer com você ou comigo. Mas você foi o azarado. Anos depois eu te disse que o fato de você ter um dente lascado era sexy. Dizia meio brincando meio de verdade, mas sabia que você nem me notava e ria amarelo da piada, só pra me deixar feliz.
O tempo passou e a gente foi pra mesma escola. Era longe pra burro e tínhamos que pegar o ônibus juntos, já que nossas casas eram perto uma da outra. E foram tempos difíceis, né? Hoje em dia falam tanto em bullying. A gente sentiu isso na pele e nem sabia o nome. Sobrevivemos juntos. Várias vezes eu fui te defender dos meninos maus do segundo ano que te chamavam de “jamanta gorda” e “elefante acéfalo”. E você nem era gordo. Depois foram as espinhas. E os piolhos. E o tal dente lascado. Falavam tanto desse dente lascado e eu não entendia o porquê daquela conversaiada. Eles eram uns idiotas, né? Eu sei que você ainda, mesmo depois de todos esses anos, tem tanta raiva deles quanto eu. A raiva não leva a nada, sabemos os dois, mas às vezes é difícil contê-la, né?
Mas tivemos bons momentos. Lembra da aula de artes que você desenhou o rosto do Macgyver e a professora achou que era o Marquês de Sade? Aí eu caí na besteira de perguntar quem era esse tal Marquês! Ela ficou roxa, se abanou com a mão e pediu desculpas. Eu ainda ouvi ela dizer para si mesma: “eu não devia ter dito nada, burra, burra, burra!”. Esqueci desse detalhe e só lembrei dessa história quando estudamos o Marquês na aula de literatura, anos depois. Depois de ler um conto desse cara é que eu entendi porque ela tinha ficado tão envergonhada.  A gente tinha só treze anos na época que ela falou aquilo, imagina! Ela podia até ser processada por citar Marquês de Sade em uma aula com menores de idade! Quanta baixaria ele escrevia! E você adorava! E eu adorava ver você adorando!
Aí veio o vestibular e o fim do colégio. Teve baile, festa, colação. E eu torci tanto pra você me convidar. Queria tanto entrar no salão do seu lado, mãos dadas, roupas bonitas e sorrisos de ouro em nossas faces. Virei uma pessoa nervosa, um ser humano à beira da explosão de ansiedade. E você não convidou. Você resolveu chamar a estúpida da Patrícia Lontes para ser seu par. Que raiva! Nossa, fico com raiva de você até hoje por causa disso! Não, não, não fico não, mas quero fazer drama... Foi um baile bacana, comida ótima, mas fiquei triste. Você estava se divertindo e eu me sentindo como aquelas almofadas que ficam jogadas de lado, às vezes no sofá, às vezes no chão, pegando pó. Poxa, logo eu, que fui uma almofada que te acompanhou a vida toda. Era tudo ciúme juvenil, claro, e acho até que você sabia, mas eu não conseguia não me sentir assim. Seria bom se a gente pudesse controlar as emoções e os sonhos, não é? Eu ia escolher sonhar só coisas boas, pois já tive cada sonho horrível que gostaria de simplesmente apagar de minha memória!
Fizemos o mesmo curso na faculdade e trabalhamos por anos na mesma empresa fazendo a mesma coisa. Fomos colegas, fizemos parcerias, saímos e entramos de projetos juntos. O chefe gostava dos dois, então sempre nos colocava pra trabalhar juntos e você com certeza se lembra disso. Os clientes só queriam fazer reuniões com a gente, os funcionários vinham falar com a gente quando tinham problemas – e isso que éramos tão funcionários quanto eles – e achavam que nós éramos os grandes salvadores da pátria. E eu sempre fazia a piada que eu não tinha cara de Lima Duarte! Ah, você tem que lembrar dessa piada! Lembra da novela em que o Lima era o principal e se chamava “O Salvador da Pátria”. Se bem que agora já estou com a memória tão fraca que nem sei se era isso mesmo. Mas não importa mais.
E eu nunca casei. Fiquei te esperando. Eu sabia (ou pelo menos queria acreditar) que alguma hora, mais cedo ou mais tarde, você iria perceber que também me amava e nós nos casaríamos, adotaríamos filhos (porque você é estéril e sabe muito bem disso, eu estava contigo quando você pegou o resultado do maldito exame), teríamos uma casa enorme e muitos livros. Mas você não percebeu. Você não sentiu. Você não casou. Nem adotou. Nem comprou os livros. 
Em uma das reuniões com clientes você conheceu a Ana Clara. Ela era linda e era mesmo. Morena de olhos verdes, alta, corpulenta, do estilo que você gosta. Eu não podia competir com ela. Deu-se o clichê óbvio. Café, cinema, festas, namoro, noivado, casamento, filhos. E eu lá. Observando de longe, participando de tudo e sorrindo. Meu sorriso continha a inveja que eu tinha de vocês. Eu era tão de casa que você não se acanhava em demonstrar amor e beijar aquela filha da puta na minha frente. Tenho certeza que se você soubesse o quanto isso me machucava, você não faria, não é? Diga que não faria, por favor, diga que não faria! Doía muito, Jorge, principalmente porque eu sabia que você era feliz. Te ver feliz com outra pessoa que não eu era horrível. E bom. E horrível. E bom. Uma dualidade de sentimentos cretina que me acompanhou por muito tempo.
Conheci seus filhos, vibrei quando você comprou a casa de campo e com tudo dando certo no trabalho. Eu também enriqueci, comprei uma casa boa, consegui pagar as dívidas da minha mãe, enterrei meu pai confortavelmente (lembro de você no enterro dele, você foi de terno preto e você estava maravilhoso de lindo. Eu enterrando meu pai e só conseguia pensar em você e em como seria bom se você me agarrasse e me puxasse pelos cabelos e fizesse amor comigo ali mesmo. No cantinho, no meio de todo mundo. Doença? Não, meu amigo, paixão!)
Seu casamento indo de vento em popa. Você feliz, realizado, completo e eu do seu lado e você sem me notar. Me notando sim, claro, mas não como eu queria. Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. Acreditei nisso e por muitas vezes rezei pra que Deus tivesse uma tremedeira nas Sagradas Mãos e o seu caminho enfim encontrasse o meu e pudéssemos viver juntos. Fechava os olhos à noite, na cama, e pedia para meus sonhos serem com você. Cada beijo seu e da Ana Clara me dilacerava a alma, parecia que meu corpo estava sendo retalhado aos poucos. Às vezes era ainda pior. Minha alma parecia se soltar de meu corpo e vagar sozinha por aí. E eu nem tinha a Wendy pra colar de volta com sabão. Eu tinha que fazer o trabalho todo. Eu que tinha que catar meus pedaços espalhados por toda a casa.
Em uma virada do destino, fiquei doente. Um vírus silencioso, contraído há tempos, resolveu finalmente se manifestar da pior maneira. Emagreci (talvez a única coisa boa dessa situação toda, afinal, nunca poderia pagar por uma lipoaspiração como você pagou para a Ana Clara), perdi cabelos, meus ossos ficaram frágeis e eu tive que me internar. Você veio me ver, trouxe meus chocolates favoritos e ficou comigo vendo as novelas das cinco, seis, sete e nove horas. Esses foram os momentos mais felizes da minha vida. Eu podia te ter só pra mim. Não existiam filhos, trabalho, Ana Clara, agência, nada. Ali, naquelas horas, você era só meu e só meu você era. Falávamos sobre as personagens, ríamos de bobagens, tínhamos idéias para viagens em conjunto. Minha mãe de vez em quando me trazia comida escondida do médico. Chocolates e doce de abóbora, que eu sempre guardava pra dividir com você porque eu sabia que eram os seus favoritos. Aí um dia minha mãe inventou de fazer pavê de chocolate com recheio de doce de abóbora e você foi à loucura. Ficou fazendo dancinhas ridículas no quarto do hospital e a enfermeira rindo, toda boba. Ela tinha prometido não contar nada para o médico. Você cativa as pessoas com seu carisma. Eu também ria e ficava feliz por você estar lá comigo. Apesar de tudo, eu sabia que meu tempo com você era curto. O médico me dava notícias cada vez piores, dia após dia. E eu não me desesperava, porque sabia que todos os dias, às duas da tarde, você chegaria e ficaria até as quatro. Que dias lindos foram esses! O céu estava azul, alegre e eu não me importava que chovia torrencialmente. Para mim o céu estava claro, azul, alegre, límpido, você.
E foi assim até hoje. Hoje você chegou e encontrou o quarto vazio. As faxineiras provavelmente já limparam o chão e o quarto está pronto para receber novos hóspedes. Provavelmente já te deram a notícia ruim e eu espero que você tenha derrubado algumas lágrimas por causa dela. Sim, meu coração não agüentou, Jorge. O médico disse que isso poderia acontecer. Quando ele me disse que eu tinha poucos dias de vida, resolvi não contar pra ninguém e te escrever essa carta. Dolorosa, longa, difícil, eu sei, mas necessária. Precisava morrer com você sabendo de tudo isso. Não sei o que me espera agora, na outra vida, mas queria fechar os assuntos dessa vida nessa vida. Não tive coragem, então espero que essa carta me ajude com isso. Pedi pra minha mãe te entregar assim que ela te encontrasse depois da minha morte. Sei que ela estará com os olhos vermelhos de tanto chorar. Eu amei muito minha mãe, Jorge, por favor, diga isso à ela. E faça com que ela acredite nisso.
Espero que sua vida seja boa, seu casamento longo, seus filhos amigos, seu trabalho na agência seja cada vez mais importante e que você consiga finalmente comprá-la, como você me disse uma vez que faria.
Se você algum dia me amou, ponha uma foto minha em um porta retrato e me guarde na sua gaveta. Quando sentir saudades – e se isso um dia acontecer – abra a gaveta, pegue a foto e me beije. Me beije, Jorge, como você nunca me beijou de verdade. Tenho a certeza de que vou sentir esses beijos lá do céu. Você não faz idéia de como eu esperei esses beijos, meu amor.
Seque as lágrimas que provavelmente estão correndo pela sua face agora e vá tomar um café de máquina, seu preferido. Não esqueça de se agasalhar no frio e de escovar os dentes, principalmente esse seu dente lascado, que é sexy. Cuide da Ana Clara e dos seus filhotes. Eu não tenho mais raiva, o que tinha que ser, foi. Destino é destino.
Não conseguiria morrer sem que você soubesse de tudo isso. Você foi tudo pra mim por toda a minha vida e vou te amar pra sempre, aqui na Terra como no Céu. Não vou revisar essa carta, ela é o fruto das minhas emoções todas e eu queria que você soubesse de tudo, assim, sem censura. 

                      Te amo, meu amor, te amo!

                                    do seu eterno apaixonado,

                                                            Paulo.