Caros visitantes,

espero que vocês divirtam-se muito lendo minhas palavras. Peço, porém, por ser esse um trabalho independente, que não republiquem meus textos - inteiros, partes, frases, versos - sem minha expressa autorização. A pena para crime de plágio é dura, além de ser algo bastante humilhante para quem é processado. Tenho certeza que não terei problemas com relação a isso, mas é sempre bom lembrar!

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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Jorge

Jorge,

eu tenho uma confissão a fazer e talvez não seja algo fácil pra você ouvir, ler, na verdade. Não sei de uma maneira melhor para explicar ou contar isso, sem ser assim, explicitamente. A verdade é que eu sempre te amei. De perto e de longe, por anos, eu te amo e te amei desde os tempos do parquinho. Lembro com prazer das nossas brincadeiras, de você colocar o pé para eu tropeçar e eu fazer a mesma coisa. Lembro até do dia que você realmente caiu com tudo, bateu a boca no chão e lascou um dente. Sua mãe ficou furiosa e disse que eu era um irresponsável. Ela não entendia que eu era só uma criança e a gente fazia tanto aquela brincadeira que o acidente poderia  acontecer com você ou comigo. Mas você foi o azarado. Anos depois eu te disse que o fato de você ter um dente lascado era sexy. Dizia meio brincando meio de verdade, mas sabia que você nem me notava e ria amarelo da piada, só pra me deixar feliz.
O tempo passou e a gente foi pra mesma escola. Era longe pra burro e tínhamos que pegar o ônibus juntos, já que nossas casas eram perto uma da outra. E foram tempos difíceis, né? Hoje em dia falam tanto em bullying. A gente sentiu isso na pele e nem sabia o nome. Sobrevivemos juntos. Várias vezes eu fui te defender dos meninos maus do segundo ano que te chamavam de “jamanta gorda” e “elefante acéfalo”. E você nem era gordo. Depois foram as espinhas. E os piolhos. E o tal dente lascado. Falavam tanto desse dente lascado e eu não entendia o porquê daquela conversaiada. Eles eram uns idiotas, né? Eu sei que você ainda, mesmo depois de todos esses anos, tem tanta raiva deles quanto eu. A raiva não leva a nada, sabemos os dois, mas às vezes é difícil contê-la, né?
Mas tivemos bons momentos. Lembra da aula de artes que você desenhou o rosto do Macgyver e a professora achou que era o Marquês de Sade? Aí eu caí na besteira de perguntar quem era esse tal Marquês! Ela ficou roxa, se abanou com a mão e pediu desculpas. Eu ainda ouvi ela dizer para si mesma: “eu não devia ter dito nada, burra, burra, burra!”. Esqueci desse detalhe e só lembrei dessa história quando estudamos o Marquês na aula de literatura, anos depois. Depois de ler um conto desse cara é que eu entendi porque ela tinha ficado tão envergonhada.  A gente tinha só treze anos na época que ela falou aquilo, imagina! Ela podia até ser processada por citar Marquês de Sade em uma aula com menores de idade! Quanta baixaria ele escrevia! E você adorava! E eu adorava ver você adorando!
Aí veio o vestibular e o fim do colégio. Teve baile, festa, colação. E eu torci tanto pra você me convidar. Queria tanto entrar no salão do seu lado, mãos dadas, roupas bonitas e sorrisos de ouro em nossas faces. Virei uma pessoa nervosa, um ser humano à beira da explosão de ansiedade. E você não convidou. Você resolveu chamar a estúpida da Patrícia Lontes para ser seu par. Que raiva! Nossa, fico com raiva de você até hoje por causa disso! Não, não, não fico não, mas quero fazer drama... Foi um baile bacana, comida ótima, mas fiquei triste. Você estava se divertindo e eu me sentindo como aquelas almofadas que ficam jogadas de lado, às vezes no sofá, às vezes no chão, pegando pó. Poxa, logo eu, que fui uma almofada que te acompanhou a vida toda. Era tudo ciúme juvenil, claro, e acho até que você sabia, mas eu não conseguia não me sentir assim. Seria bom se a gente pudesse controlar as emoções e os sonhos, não é? Eu ia escolher sonhar só coisas boas, pois já tive cada sonho horrível que gostaria de simplesmente apagar de minha memória!
Fizemos o mesmo curso na faculdade e trabalhamos por anos na mesma empresa fazendo a mesma coisa. Fomos colegas, fizemos parcerias, saímos e entramos de projetos juntos. O chefe gostava dos dois, então sempre nos colocava pra trabalhar juntos e você com certeza se lembra disso. Os clientes só queriam fazer reuniões com a gente, os funcionários vinham falar com a gente quando tinham problemas – e isso que éramos tão funcionários quanto eles – e achavam que nós éramos os grandes salvadores da pátria. E eu sempre fazia a piada que eu não tinha cara de Lima Duarte! Ah, você tem que lembrar dessa piada! Lembra da novela em que o Lima era o principal e se chamava “O Salvador da Pátria”. Se bem que agora já estou com a memória tão fraca que nem sei se era isso mesmo. Mas não importa mais.
E eu nunca casei. Fiquei te esperando. Eu sabia (ou pelo menos queria acreditar) que alguma hora, mais cedo ou mais tarde, você iria perceber que também me amava e nós nos casaríamos, adotaríamos filhos (porque você é estéril e sabe muito bem disso, eu estava contigo quando você pegou o resultado do maldito exame), teríamos uma casa enorme e muitos livros. Mas você não percebeu. Você não sentiu. Você não casou. Nem adotou. Nem comprou os livros. 
Em uma das reuniões com clientes você conheceu a Ana Clara. Ela era linda e era mesmo. Morena de olhos verdes, alta, corpulenta, do estilo que você gosta. Eu não podia competir com ela. Deu-se o clichê óbvio. Café, cinema, festas, namoro, noivado, casamento, filhos. E eu lá. Observando de longe, participando de tudo e sorrindo. Meu sorriso continha a inveja que eu tinha de vocês. Eu era tão de casa que você não se acanhava em demonstrar amor e beijar aquela filha da puta na minha frente. Tenho certeza que se você soubesse o quanto isso me machucava, você não faria, não é? Diga que não faria, por favor, diga que não faria! Doía muito, Jorge, principalmente porque eu sabia que você era feliz. Te ver feliz com outra pessoa que não eu era horrível. E bom. E horrível. E bom. Uma dualidade de sentimentos cretina que me acompanhou por muito tempo.
Conheci seus filhos, vibrei quando você comprou a casa de campo e com tudo dando certo no trabalho. Eu também enriqueci, comprei uma casa boa, consegui pagar as dívidas da minha mãe, enterrei meu pai confortavelmente (lembro de você no enterro dele, você foi de terno preto e você estava maravilhoso de lindo. Eu enterrando meu pai e só conseguia pensar em você e em como seria bom se você me agarrasse e me puxasse pelos cabelos e fizesse amor comigo ali mesmo. No cantinho, no meio de todo mundo. Doença? Não, meu amigo, paixão!)
Seu casamento indo de vento em popa. Você feliz, realizado, completo e eu do seu lado e você sem me notar. Me notando sim, claro, mas não como eu queria. Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. Acreditei nisso e por muitas vezes rezei pra que Deus tivesse uma tremedeira nas Sagradas Mãos e o seu caminho enfim encontrasse o meu e pudéssemos viver juntos. Fechava os olhos à noite, na cama, e pedia para meus sonhos serem com você. Cada beijo seu e da Ana Clara me dilacerava a alma, parecia que meu corpo estava sendo retalhado aos poucos. Às vezes era ainda pior. Minha alma parecia se soltar de meu corpo e vagar sozinha por aí. E eu nem tinha a Wendy pra colar de volta com sabão. Eu tinha que fazer o trabalho todo. Eu que tinha que catar meus pedaços espalhados por toda a casa.
Em uma virada do destino, fiquei doente. Um vírus silencioso, contraído há tempos, resolveu finalmente se manifestar da pior maneira. Emagreci (talvez a única coisa boa dessa situação toda, afinal, nunca poderia pagar por uma lipoaspiração como você pagou para a Ana Clara), perdi cabelos, meus ossos ficaram frágeis e eu tive que me internar. Você veio me ver, trouxe meus chocolates favoritos e ficou comigo vendo as novelas das cinco, seis, sete e nove horas. Esses foram os momentos mais felizes da minha vida. Eu podia te ter só pra mim. Não existiam filhos, trabalho, Ana Clara, agência, nada. Ali, naquelas horas, você era só meu e só meu você era. Falávamos sobre as personagens, ríamos de bobagens, tínhamos idéias para viagens em conjunto. Minha mãe de vez em quando me trazia comida escondida do médico. Chocolates e doce de abóbora, que eu sempre guardava pra dividir com você porque eu sabia que eram os seus favoritos. Aí um dia minha mãe inventou de fazer pavê de chocolate com recheio de doce de abóbora e você foi à loucura. Ficou fazendo dancinhas ridículas no quarto do hospital e a enfermeira rindo, toda boba. Ela tinha prometido não contar nada para o médico. Você cativa as pessoas com seu carisma. Eu também ria e ficava feliz por você estar lá comigo. Apesar de tudo, eu sabia que meu tempo com você era curto. O médico me dava notícias cada vez piores, dia após dia. E eu não me desesperava, porque sabia que todos os dias, às duas da tarde, você chegaria e ficaria até as quatro. Que dias lindos foram esses! O céu estava azul, alegre e eu não me importava que chovia torrencialmente. Para mim o céu estava claro, azul, alegre, límpido, você.
E foi assim até hoje. Hoje você chegou e encontrou o quarto vazio. As faxineiras provavelmente já limparam o chão e o quarto está pronto para receber novos hóspedes. Provavelmente já te deram a notícia ruim e eu espero que você tenha derrubado algumas lágrimas por causa dela. Sim, meu coração não agüentou, Jorge. O médico disse que isso poderia acontecer. Quando ele me disse que eu tinha poucos dias de vida, resolvi não contar pra ninguém e te escrever essa carta. Dolorosa, longa, difícil, eu sei, mas necessária. Precisava morrer com você sabendo de tudo isso. Não sei o que me espera agora, na outra vida, mas queria fechar os assuntos dessa vida nessa vida. Não tive coragem, então espero que essa carta me ajude com isso. Pedi pra minha mãe te entregar assim que ela te encontrasse depois da minha morte. Sei que ela estará com os olhos vermelhos de tanto chorar. Eu amei muito minha mãe, Jorge, por favor, diga isso à ela. E faça com que ela acredite nisso.
Espero que sua vida seja boa, seu casamento longo, seus filhos amigos, seu trabalho na agência seja cada vez mais importante e que você consiga finalmente comprá-la, como você me disse uma vez que faria.
Se você algum dia me amou, ponha uma foto minha em um porta retrato e me guarde na sua gaveta. Quando sentir saudades – e se isso um dia acontecer – abra a gaveta, pegue a foto e me beije. Me beije, Jorge, como você nunca me beijou de verdade. Tenho a certeza de que vou sentir esses beijos lá do céu. Você não faz idéia de como eu esperei esses beijos, meu amor.
Seque as lágrimas que provavelmente estão correndo pela sua face agora e vá tomar um café de máquina, seu preferido. Não esqueça de se agasalhar no frio e de escovar os dentes, principalmente esse seu dente lascado, que é sexy. Cuide da Ana Clara e dos seus filhotes. Eu não tenho mais raiva, o que tinha que ser, foi. Destino é destino.
Não conseguiria morrer sem que você soubesse de tudo isso. Você foi tudo pra mim por toda a minha vida e vou te amar pra sempre, aqui na Terra como no Céu. Não vou revisar essa carta, ela é o fruto das minhas emoções todas e eu queria que você soubesse de tudo, assim, sem censura. 

                      Te amo, meu amor, te amo!

                                    do seu eterno apaixonado,

                                                            Paulo.

3 comentários:

Bruno Malveira disse...

Então eu faço um comentário, mesmo não tendo muito o que falar, nem ser desses que comentam qualquer coisa...

Apesar do final triste e egoísta - se guardou tudo isso a vida toda, porque diabos vai importunar o cara depois de morrer? - realmente passa a sensação de que ele o amou e ficou atormentado por não ter coragem de falar.

Tem partes do texto que parece que dá pra ouvir a pessoa falando, mas isso também pode ser viagem minha, ou porque algumas partes lembram a forma como você fala, sei lá...

Gostei do texto, mesmo não gostando da (falta de) atitude da personagem.

ℬruna ℘inheiro disse...

Eu gostei do texto, senti cada palavra, cada situação, e até viajei na história.
Mesmo sendo um amor que ao ver do personagem, não poderia ser expresso, a carta deixada após a morte revelou isso de uma forma que talvez se ele tentasse dizer isso pessoalmente, não teria o mesmo efeito.
Não sou de comentar muito, mas há textos que simplesmente merecem.
Tudo de bom.

Karina Mochetti disse...

Um dos seus melhores textos! Colocaria nos meus 3 preferidos COM CERTEZA!!! :)