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espero que vocês divirtam-se muito lendo minhas palavras. Peço, porém, por ser esse um trabalho independente, que não republiquem meus textos - inteiros, partes, frases, versos - sem minha expressa autorização. A pena para crime de plágio é dura, além de ser algo bastante humilhante para quem é processado. Tenho certeza que não terei problemas com relação a isso, mas é sempre bom lembrar!

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sábado, 24 de março de 2012

Cigana

                                                                                                  para minha amada tia Ana Vasconcellos Pereira


Seu violão ainda está no meu armário
Seus textos, suas cartas, seu caderno também
Você também está em um armário imaginário
que desafia o tempo e o espaço
que abro vez por outra para sentir saudades

Saudades eternas, saudades por vezes muito cruéis
saudade da conversa, do apoio incondicional ao que ainda nem tinha sido pensado
saudade do quindim no subúrbio de Porto Alegre
saudade de te ouvir cantar suas canções dizendo que iria parar de vadiar e no campo morar
saudade de te ver comer carne de churrasco com gosto, com molho, com vontade
saudade daquele seu apartamento, do rádio amarelo com fitas cassetes de mil anos atrás

Você me ensinou a brincar naqueles carrinhos de corrida como se fossem de verdade, respeitando os pedestres
e eu ria
Você me levou pra andar de barco pela primeira vez na minha vida
(e era um barco velho e a gente viu o barco chique de longe e nem ligou)
Você me ofereceu um cigarro e eu não tinha nem quinze anos porque sabia que eu ia recusar
Você me mostrou uma vida que eu ainda não tinha idéia
a vida livre, sem amarras, sem problemas

Mas você tinha um problema, né?
Atormentava sua cabeça esse problema, né?
Eu sei, eu vi
E a cabeça ficava meio louca e você jogava quadros no chão
seus próprios quadros, tão bem pintados
tão detalhistas
você era uma artista, linda, no melhor conceito da palavra
você era a arte em pessoa

E o vidro dos quadros se estilhaçava e você também se estilhaçava
e nós que olhávamos aquilo nos estilhaçávamos também
e a dor tomava conta da sala com seu cheiro podre

e eu fui pro seu apartamento e eu fui feliz lá
tenho fotos
era pra ser o primeiro dia de muitos que eu ia passar contigo
e foi o primeiro e último

Tudo que é bom dura pouco, dizem por aí
E olhei a sacada
eram seis andares
e peguei uma pedrinha
e taquei de lá de cima
e vi ela quicar lá embaixo
e falei “nossa, como é alto”

Mal sabia eu que a próxima a cair seria você, dois meses depois
Acho que o meu medo de altura começou aí

Por que você teve que se matar, tia? Por que?
Por que me deixar aqui sozinho? Por que?

Eu sei que você não se encaixava, mas eu também não me encaixo às vezes e continuo por aqui

Eu te amava tanto e te amo tanto e vou te amar pra sempre e sinto tanto a sua falta
eu te ajudaria, tia
eu só precisava crescer um pouco
custava esperar?

eu amadureci anos naquele ano
esse choque de realidade e de perda fez com que eu morresse um pouco também
e essa ferida nunca fecha
os anos passam, vem, vão
mas a ferida continua aqui no peito, sangrando aos borbotões
e eu só queria estar lá pra segurar sua mão uma vez mais e dizer o quanto eu te amava
e o quanto eu te amo ainda

Eu sei que você tá me vendo daí do país onde sempre faz verão
as frutas aí são mais gostosas, o clima é ameno
e não existem doenças, nem problemas

Mas a dor é egoísta e eu só queria você de volta
demorei anos pra ouvir a fita com as suas gravações
e fechei o olho e fiquei lembrando daquele dia
daquele último dia
nossas duas almas em ressonância
e eu sei que você me amava
e eu sei que era pedir muito pra você ficar nesse planetinha besta

Eu sei

Eu sei

mas a saudade dói e não escolhe momento, não escolhe dia, não escolhe ano, não escolhe, simplesmente
a ferida abre, esgarça e dói, até fisicamente
e hoje tomo coragem pra escrever
lembrar de ti, das músicas que fizemos juntos não tão juntos
dos papos todos malucos

e eu só queria você de volta tocando violão comigo
e eu só queria você de volta rachando um pedação de carne de churrasco
e eu só queria você de volta me contando histórias de cigana nômade que você era e piadas
e eu só queria você de volta pra andar de barco e não enjoar

e eu só queria você de volta
e eu só queria você de volta
e eu só queria você de volta
e eu só queria você de volta

Volta

Um comentário:

Unknown disse...

É
Não é fácil, querido

Entendo sua saudade... o choro escondido pela volta... mas ela está em você...

E quem sabe ela não volte, ou já voltou, num sorriso autêntico de uma nova criança? Ou mesmo um filho?

Deus é tão bom, e o amor nunca se extingue pela morte... é um até breve...